sábado, dezembro 24, 2005

Presente de Natal


Caros amigos e frequentadores do Sarau,
Compartilho com vocês este belo presente recebido de uma pessoa querida.
Que o ritual de hoje nos renove a inspiração e a motivação de viver. Simplesmente.

Certas Esperanças
Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

É preciso — é mais do que preciso, é forçoso — dar boas festas, trocar embrulhinhos, querer mais intensamente, oferecer com mais prodigalidade, manter o sorriso e, acima de tudo, esquecer tristezas e saudades. Façamos um supremo esforço para lembrar e sermos lembrados, porque assim manda a tradição e é difícil esquecer à tradição. Enviemos cartões e telegramas de felicitações àqueles que amamos e também àqueles que — sabemos perfeitamente — não gostam da gente. O Correio, nesta época do ano, finge-se de eficiente e já lá tem prontos impressos para que desejemos coisas boas aos outros, nivelando a todos em nossos augúrios. Depois de abraçar e ser abraçado, desejar sincera e indiferentemente, embrulhar e desembrulhar presentes, cada um poderá fazer votos a si mesmo, desejar para si o que bem entender. Subindo na escala das idades, este sonhou todo o mês com um trenzinho elétrico, aquele com uma bicicleta (com farol e tudo), o outro certa moça, mais além um quarto sonhador esteve a remoer a idéia de ser ministro e o rico... bem, o rico só pensa em ser mais rico. O rico detesta amistosamente os ministros, já não tem olhos para a graça da moça, pernas para pedalar uma bicicleta e, muito menos, tempo para brincar com um trenzinho. Dos planos de cada um, pouquíssimos serão transformados em realidade. Alguns hão de abandoná-los por desleixo e a maioria, mal o ano de 56 começar, não pensará mais nele, por pura desesperança. O melhor, portanto, é não fazer planos. Desejar somente, posto que isso sim, é humano e acalentador. De minha parte estou disposto a esquecer todas as passadas amarguras, tudo que o destino me arranjou de ruim neste ano que finda. Ficarei somente com as lembranças do que me foi grato e me foi bom. No mais, desejarei ficar como estou porque, se não é o que há de melhor, também não é tão ruim assim e, tudo somado, ficaram gratas alegrias. Que Deus me proporcione as coisas que sempre me foram gratas e que — Ele sabe — não chegam a fazer de mim um ambicioso. Que não me falte aquele almoço honesto dos sábados (único almoço comível na semana), com aquele feijão que só a negra Almira sabe fazer; que não me falte o arroz e a cerveja — é muito importante a cerveja, meu Deus! —, como é importante manter em dia o ordenado da Almira. Se não me for dado comparecer às grandes noites de gala, que fazer? Resta-me o melhor, afinal, que é esticar de vez em quando por aí, transformando em festa uma noite que poderia ser de sono. E para os pequenos gostos pessoais, que me reste sensibilidade bastante para entretê-las. Ai de mim se começo a não achar mais graça nos pequenos gostos pessoais. Que o perfume do sabonete, no banho matinal, seja sempre violeta; que haja um cigarro forte para depois do café; uma camisa limpa para vestir; um terno que pode não ser novo, mas que também não esteja amarrotado. Uma vez ou outra, acredito que não me fará mal um filme da Lollobrigida, nem um uísque com gelo ou — digamos — uma valsa. Nada de coisas impossíveis para que a vida possa ser mais bem vivida. Apenas uma praia para janeiro, uma fantasia para fevereiro, um conhaque para junho, um livro para agosto e as mesmas vontades para dezembro. No mais, continuarei a manter certas esperanças inconfessáveis porém passíveis — e quanto — de acontecerem.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Complexo de Amélie Poulain. Ou reflexões de uma moça às vésperas de um novo ano.

Nesse dia o espelho lhe disse: “Não fica dando uma de boa moça. A vida é não é filme e você não entendeu!”, plagiando um certo compositor. A moça - nem bonita nem feia, mais sorriso que olhar, não mais menina e ainda quase mulher – analisava por um instante sua história. Pensava nas inúmeras pessoas que conhecera, naquelas que haviam entendido seus refrões, nas que havia perdido por algum gesto demasiado assertivo ou por uma palavra mal colocada. Recordava as tentativas exitosas e as frustadas. Não soube ao certo contabilizar a proporção entre elas. O que fora frustado um dia, mostrara-se exitoso noutro. E vice-versa.

Algo, no entanto, lhe doía n’alma: a incerteza sobre ter feito a melhor escolha entre as personagens possíveis até então. Sempre se esforçara para ser a “boa moça”? Era isso ? O mundo, no entanto, de quando em quando sussurrava ao seu ouvido que os “bons moços” eram muitas, inúmeras e redundantes vezes acometidos de males perversos como profunda ingenuidade e falta de crítica. Ela o sabia. E não era ingênua. Muito menos carecia de crítica.

Buscou encontrar no próprio reflexo uma resposta para sua questão. Viu então desfilar diante de si uma porção de imagens, de pessoas. Pessoas que admirara durante a vida (e que ainda admirava). Todas com algo em comum, homens e mulheres: a credulidade. A crença nas pessoas, em suas razões e em seu potencial.

Finalmente, compreendeu que essa sempre fora sua escolha, seu papel preferido: ser crédula. Percebeu que entre as duas personagens, entre a boa moça e a crédula, existia uma diferença abissal. A primeira era a alternativa cômoda, desprovida de intenção, apropriada apenas. Já a segunda era necessidade, instinto, sentir-se no elemento.

Lastimou que muitos cobrassem dela a postura da boa moça, sem distinguir corretamente sua condição. Por isso, às vezes, se ressentiam com ela. E ela também com eles.

Contudo, satisfeita com a resposta que o espelho lhe dera, respirou fundo e sorriu. Vestiu a fantasia de sempre. Ainda não haviam chegado hora nem motivo de mudar. Talvez incrementasse alguns assessórios novos, mas o figurino básico permaneceria o mesmo.

Saiu e foi festejar o novo ano que chegava, acreditando nele também.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Ritualizar é preciso


Final de ano e a típica maratona de jantares, comemorações e todo tipo de eventos sociais se inicia com grande entusiasmo. Nesse turbilhão de festividades, entre um aperitivo e outro, surpreendo-me com alguma frequência indagando o porquê de tantas alegrias com hora marcada, de uns quantos encontros entre colegas e parentes que acontecem uma única vez ao ano, naquele mesmo dia, daquela mesma forma. Sob um olhar rápido, os sorrisos e cumprimentos parecem até forjados e mecânicos. Mas, ao observar melhor, percebo que há nesses rituais, com todos os seus gestos tradicionais, um propósito relevante.

São como grandes algarismos em nosso relógio da vida, marcando o passar do tempo e o significado de cada etapa. Pêndulos que soam alto e que nos fazem parar por um longo instante para observar e refletir. Sobre amigos e familiares presentes e ausentes, relações, tempo e espaço nos quais interferimos. Sobre como “tiquetaqueamos” por aí!

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Tagarelas

Ontem, ao ver num noticário de TV algum político discursar com as devidas frases prontas, as pausas cronometradas, a assertividade calculada e o dissimulado olhar no olho (nesse caso, na câmera), pensei que ditos tagarelas são um ótimo exemplo dos espetáculos de que é capaz o chamado media trainning. Para quem não está familiarizado com o termo, media trainning é um tipo de treinamento aplicado, em geral, por empresas especializadas em assessoria de imprensa. Esse treinamento, além de postura, impostação de voz e afins, ensina a quem fala à mídia (ou ao público) como se expressar para ser entendido dessa ou daquela maneira, por tal ou qual interlocutor. Ensina também artifícios de argumentação para as incômodas saias justas ou situações em que simplesmente não se quer (ou não se pode) comentar o assunto, mas há que se parecer objetivo e contundente. Certamente, estes senhores, os políticos, estão entre os melhores alunos da matéria (ou piores, dependendo do ponto de vista). E há muito já ultrapassaram as fronteiras da timidez e da “vergonha”.

Imaginei então que aconteceria se passasse a existir um órgão de regulamentação da atividade de relações públicas (a exemplo do CONAR para a publicidade), voltado a regular forma e conteúdo dos discursos veiculados na mídia. O intuito seria manter um mínimo de veracidade no que se fala e um máximo tolerável de uso dos artifícios de retórica. “Discurso enganoso”, “plágio de argumentação”, “matéria ofensiva” e “sofismas” seriam tratados como infrações graves. Penalizar-se-iam os contraventores com períodos de mudez pública compulsória (curtos ou longos, dependendo dos delitos). Aplicadas as regras à situação atual, ficaríamos um bom tempo sem ouvir muitos e muitos tagarelar por aí. Fica dada a sugestão!

sexta-feira, dezembro 02, 2005

As 1.000 histórias

Já sei, já sei... Escrever sobre pena de morte parece coisa de vestibulando treinando argumentação com um tema já bem gasto. O caso é que hoje li na página de abertura do UOL a seguinte manchete: “EUA executam milésimo condenado à morte”. E imediatamente tentei abstrair o inalcançável sentimento de se estar fadado a uma injeção letal. A angústia da espera. Sofrimento talvez maior que o da própria morte. No perfil do milésimo condenado, ao qual se impunha a pena capital por ter matado esposa e sogro na frente dos dois filhos, além dos problemas com alcoolismo, algo mais chamava à atenção: era veterano da Guerra do Vietnã.

Meu sábio pai (e se você o conhece concorda que o “sábio” ali não está à toa) costuma dizer que uma pessoa somente muda, para melhor ou para pior, se passa por uma experiência visceral. Se prova algo que “sente nas veias”, isto é, capaz de alterar o ritmo das pulsações com intensidade e por tempo suficientes para deixar registrado um novo estado de espírito no ser.

Segundo a notícia, o veterano de guerra nunca negou ser culpado pelo crime ao qual fora condenado, mas afirmou que os traumas vividos no Vietnã contribuíram para alterar o seu estado mental no dia do crime. Ouso traduzir que, em outras palavras, ele nunca mais fora o mesmo depois do vivido durante a guerra. Que em seu tempo no front registrou o comando “matar” como ordem para momentos em que o ritmo de sua pulsação chegasse à determinada intensidade. Para mim, é difícil dizer com convicção quem é o verdadeiro ou maior culpado. E que dizer das outras 999 histórias?